A existência de traficantes que se apresentam como evangélicos necessariamente traz à mente a pergunta: “o que é um evangélico?”. Antes de repudiarmos a afirmação midiática, ou a autodeclaração dos marginais como evangélicos, devemos verificar o conceito e a definição (os limites do que é e do que se entende como) de evangélico.
Ser evangélico não depende de quem diz ou do consenso geral. O ser evangélico tem um significado em si, mas a situação extrema de traficantes que se apresentam assim demonstra que este não é mais um conceito líquido e certo. Infelizmente, embora haja muita má fé, muitas pessoas sinceras deste modo compreendem e o próprio erro dos traficantes em assim se considerar demonstra isso. Esses traficantes têm por evangélico conceito e gente que não é genuinamente evangélica.
O caso dos traficantes do Complexo de Israel levanta a necessidade de levar o povo carioca a redescobrir o significado de evangélico. Tornar a palavra “evangélico” como qualificadora de traficância não foi um caminho curto. Erros fundamentais no ensino e pregação de muitas igrejas levaram a isso. Posturas e omissões equivocadas de muitos de nós evangélicos conduziram à iliquidez e incerteza do significado de nossa denominação como evangélicos. Vou apontar alguns erros que percebi em minha caminhada e estão sistematizados e verificados pelo Dr. Martin Lloyd-Jones em seu livro “O que é um evangélico?”.
O primeiro é que nos acostumamos a ter por evangélico alguém que faz certas declarações; ou alguém que faz certas afirmações convergentes ou positivas com as doutrinas da fé evangélica comum. Lembro-me certa vez de ouvir um missionário transcultural experiente – hoje pastor em Petrópolis – criticar os mestres da igreja que denunciavam a teologia da prosperidade ou confissão positiva (que pratica a superstição e tira a centralidade de Cristo da vida do fiel), pois o que importava, segundo ele, é que os pregadores da prosperidade falavam de Cristo e pregavam a Bíblia. Isso foi em meados dos anos 90 e foi bem equivocado. Não há sentido em considerar evangélico alguém apenas por fazer afirmações evangélicas enquanto, concomitantemente, faz afirmações e práticas contraditórias ou degenerativas delas. Define-se um evangélico não só por afirmações e práticas positivas do pretenso fiel, mas também negativas. Como diz Lloyd-Jones, “a verdade cristã tem muitas partes, mas todas elas estão inter-relacionadas”.
Um segundo erro é que na sociedade brasileira têm-se por evangélico quem não é católico e isso traz muita confusão: muitos consideram testemunhas de Jeová, adventistas, mórmons, certos grupos neopentecostais, Vó Rosa, Apóstola Sol – dentre outros – como evangélicos. O homem comum não distingue, inclusive jornalistas e formadores de opinião. Destarte, eles rotulam como evangélicas as afirmações e práticas não evangélicas e liquefazem a definição, afrouxando os limites entre o que é e o que não é um evangélico.
O terceiro erro é o abandono do sentido inicial do que é um evangélico. Isso se deu pelo rápido crescimento sem correspondente formação de clérigos que formassem doutrinariamente o povo; porém se deu também indulgência com as práticas evangelísticas e missionárias – que buscando inserir-se culturalmente – afrouxaram esse sentido original. A verdade é que há poucos anos atrás reconhecia-se o evangélico como alguém que cria, no dizer de Lloyd-Jones, que “a fé evangélica [no sentido da fé que vem dos Evangelhos] é a única verdadeira expressão doutrinária da fé cristã”. Este evangélico tolerava que alguém fosse cristão e defeituoso em sua doutrina pois o seu “interesse…e empenho [eram] no sentido de apresentar a doutrina verdadeira em sua plenitude”. Muitos enxergam o evangélico como um maníaco pela verdade bíblica dos Evangelhos.
Por isso é que se diz que o evangélico é restritivo – a quantidade de seus fiéis se afunila na qualidade do conhecimento bíblico doutrinário adquirido e praticado por eles – sentido hoje abandonado. Ele não é inclusivo, mas restringe a adesão à fé cristã ao conteúdo e à busca da verdade evangélica. Por isso o chamado “cristão cultural” não pode ser tomado como evangélico, e este é justamente o quarto erro.
Hoje há uma profusão de expressões de extração comunitária evangélica incorporadas ao vocabulário popular. “O sangue de Jesus tem poder”, “oh glória”, “misericórdia”, dentre outros, estão na boca do povo. Atos de culto público e particular foram ressignificados conforme a cultura supersticiosa brasileira: “fui orado pelo pastor”, “sete semanas de unção”, e outros foram incorporados ao cânone não escrito da superstição brasileira. Há aqueles que abrem a Bíblia no Salmo 91 ou o recitam como amuleto de sorte. O Salmo 91 se refere a Cristo (“direi do Senhor, Ele (Jesus) é o meu Rei – o que habita no esconderijo do Altíssimo”) e quem se dispõe a se colocar no lugar dEle (ser chicoteado, cuspido, crucificado e carregar todo o pecado da humanidade nas costas) pode se candidatar a se abrigar no esconderijo do Altíssimo. Eu, por exemplo, se for me abrigar à direita do Altíssimo cairei fulminado, mas Cristo está lá em meu lugar, como meu representante. Há também aqueles que transformam textos e histórias bíblicas em teologia do coach, e usam versos da Bíblia totalmente fora de seu sentido, como “tudo posso naquele que me fortalece”, esquecendo o contexto deles.
Pois bem, não é incomum que se veja o cristão cultural e usuário de vocabulário evangélico como evangélico. É um tipo de ecumenismo via cultural. O sujeito na verdade é um adepto inconsciente das religiões que parasitam o cristianismo (fideísmo – fé na fé; entusiastas – a crença que certos sentimentos de motivação e entusiasmo são ação divina), usa expressões ou textos bíblicos com palavras correlacionadas e se pensa ou é visto como evangélico. O cristão cultural – mesmo quando se diz evangélico – não é bíblico, e bíblico é um limite nessa definição do que é ou não um evangélico.
Há outros erros que conduziram à incerteza e iliquidez do que é um evangélico, e continuarei a escrever sobre isso. Uma coisa porém é certa: traficância e violência sobre a população de determinado território não combinam com o arrependimento de pecados que o evangélico prega e pratica. Isso, para mim, já desfaz muito dessa perplexidade que surge ao ler jornais que falam de traficância “evangélica”.