Somente a fé.
“Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 5.24, 17.17)
Eram tempos difíceis para a vida cristã comum. Os fieis eram enredados em um sem-fim de elementos que os tornavam prisioneiros de um sistema que guardava certa distância daquilo que a Escritura nos mostra como sendo a sã doutrina e a vida em comunhão na igreja. Ainda mencionando Louis Berkhof, ele entende que duas coisas foram as de maior influência para o início da obra de reforma encabeçada por Martinho Lutero: tanto o sistema de penitências quanto o forte tráfico de indulgências teriam causado tamanha repulsa no reformador que ele deflagrou a sua caminhada em direção à Reforma.1
Desde muito cedo, ainda em 1513, Lutero teve contato com o texto de Paulo aos Romanos, e as convicções do então religioso católico estavam balançadas. Nesse tempo, registra-se que Lutero tenha passado por tempos de agitação e tenha nutrido verdadeiro asco pelos poderes eclesiásticos que ele passou a conhecer mais de perto, particularmente quando viu o comércio da salvação e a exploração de gente muito pobre com fins a enriquecer cada vez mais o sistema clerical e a executar seus projetos grandiosos, dentre os quais a Basílica de São Pedro, no Vaticano. A essa altura, mesmo inconformado com as questões ao seu redor, Lutero podia pregar livremente, e a pregação pautada nas Escrituras começou a atrair multidões para ouvi-lo na Capela de Wittenberg. Quando chegamos a 1517, a pregação bíblica de Lutero já ecoava em muitos corações que passaram a entender mais da verdade bíblica e ansiar por mudanças profundas. Berkhof ainda registra a respeito do apego de Lutero ao texto de Romanos 1.17 que
Mesmo profundamente imerso em obras penitenciais quando com base em Romanos 1.17, raiou-lhe verdade que o homem é justificado exclusivamente pela fé, e ele pôde entender que o arrependimento, exigido em Mateus 4.17, nada tem em comum com as obras de preparação postuladas pelo romanismo; antes, o arrependimento consiste de real contrição íntima do coração, como o fruto da graça de Deus com exclusividade.2
Os textos acima são muito emblemáticos e nos dizem “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé.” (Romanos 1.17) e “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 4.17). Joel Beeke defende a ideia de que a “frase ‘justificação pela fé somente’ foi a chave que abriu a Bíblia para Lutero. Ele veio a entender cada uma dessas quatro palavras em relações às outras à luz da Escritura e do Espírito”. Assim, temos o início do processo pelo qual várias algemas começavam a ser abertas e os crentes podiam começar a sonhar com uma vida cristã verdadeiramente livre de elementos de religiosidade que nada mais tinham a ver com a expressão da Escritura.
Depois da Reforma, a doutrina da justificação pela fé somente (Sola Fide) torna-se o grande princípio material, tendo sido o elemento fundamental para a correção do que passou a ser crido com o tempo, de que justificação e santificação se confundiam e eram praticamente a mesma coisa. Em outras palavras, a teologia vigente entendia que a salvação era constante e progressiva, ao mesmo tempo em que sobre ela havia garantias dadas pelo pertencimento à Igreja Católica. Algum tempo após o início da Reforma, no Concílio de Trento (1547), Roma responde aos “solas” da Reforma e, particularmente quanto ao Sola Fide, apresenta que os pecadores são justificados pelo seu batismo, que a justificação é pela fé em Cristo e pelas boas obras de uma pessoa, que os pecadores não são justificados unicamente pela justiça imputada de Jesus Cristo. Além disso, diz que uma pessoa pode perder sua salvação (ou seja, os efeitos da justificação).
No entanto, a Reforma diferencia justificação de santificação, crendo que a “justificação é um ato judicial de Deus, no qual ele declara, com base na justiça de Jesus Cristo, que todas as reivindicações da lei são satisfeitas com vistas ao pecador”3, isso porque é nesse ponto que entendemos o perdão dos pecados e o favor divino que vem sobre a vida daquele que antes era inimigo de Deus, tornando-o seu filho. Confirmando tudo isso, a pergunta 33 do Breve Catecismo de Westminster interpela: “Que é justificação?”, ao que se segue a resposta: “Justificação é um ato da livre graça de Deus, no qual Ele perdoa todos os nossos pecados, e nos aceita como justos diante de Si, somente por causa da justiça de Cristo a nós imputada, e recebida só pela fé.” Berkhof resume que a justificação remove a culpa do pecado e restaura o pecador ao seu estágio e privilégios de filho de Deus, que ela acontece por um ato jurídico de Deus em nosso favor, que acontece uma vez por todas, sem que possamos dela decair e que todo o mérito repousa sobre Cristo e sua obra vicária. Assim, conclui ele, enquanto Deus, o Filho, promove a obra da justificação, “em termos de economia, Deus, o Pai, declara justo o pecador, e Deus, o Espírito Santo, o santifica.”4